Quem escreveu a Bíblia?

Quem escreveu a Bíblia?


A história de Deus foi escrita pelos homens. Mas quem é o autor do livro mais influente de todos os tempos? As respostas são surpreendentes - e vão mudar sua maneira de ver as Escrituras

Por José Francisco Botelho
access_time30 nov 2008, 22h00 - Atualizado em 31 out 2016, 18h34


Hoje a Bíblia contém 66 livros
Em algum lugar do Oriente Médio, por volta do século 10 a.C., uma pessoa decidiu escrever um livro. Pegou uma pena, nanquim e folhas de papiro (uma planta importada do Egito) e começou a contar uma história mágica, diferente de tudo o que já havia sido escrito. Era tão forte, mas tão forte, que virou uma obsessão. Durante os 1 000 anos seguintes, outras pessoas continuariam reescrevendo, rasurando e compilando aquele texto, que viria a se tornar o maior best seller de todos os tempos: a Bíblia. Ela apresentou uma teoria para o surgimento do homem, trouxe os fundamentos do judaísmo e do cristianismo, influenciou o surgimento do islã, mudou a história da arte – sem a Bíblia, não existiriam os afrescos de Michelangelo nem os quadros de Leonardo da Vinci – e nos legou noções básicas da vida moderna, como os direitos humanos e o livre-arbítrio. Mas quem escreveu, afinal, o livro mais importante que a humanidade já viu? Quem eram e o que pensavam essas pessoas? Como criaram o enredo, e quem ditou a voz e o estilo de Deus? O que está na Bíblia deve ser levado ao pé da letra, o que até hoje provoca conflitos armados? A resposta tradicional você já conhece: segundo a tradição judaico-cristã, o autor da Bíblia é o próprio Todo-Poderoso. E ponto final. Mas a verdade é um pouco mais complexa que isso.

A própria Igreja admite que a revelação divina só veio até nós por meio de mãos humanas. A palavra do Senhor é sagrada, mas foi escrita por reles mortais. Como não sobraram vestígios nem evidências concretas da maioria deles, a chave para encontrá-los está na própria Bíblia. Mas ela não é um simples livro: imagine as Escrituras como uma biblioteca inteira, que guarda textos montados pelo tempo, pela história e pela fé. Aliás, o termo “Bíblia”, que usamos no singular, vem do plural grego ta biblia ta hagia – “os livros sagrados”. A tradição religiosa sempre sustentou que cada livro bíblico foi escrito por um autor claramente identificável. Os 5 primeiros livros do Antigo Testamento (que no judaísmo se chamam Torá e no catolicismo Pentateuco) teriam sido escritos pelo profeta Moisés por volta de 1200 a.C. Os Salmos seriam obra do rei Davi, o autor de Juízes seria o profeta Samuel, e assim por diante. Hoje, a maioria dos estudiosos acredita que os livros sagrados foram um trabalho coletivo. E há uma boa explicação para isso.

As histórias da Bíblia derivam de lendas surgidas na chamada Terra de Canaã, que hoje corresponde a Líbano, Palestina, Israel e pedaços da Jordânia, do Egito e da Síria. Durante séculos acreditou-se que Canaã fora dominada pelos hebreus. Mas descobertas recentes da arqueologia revelam que, na maior parte do tempo, Canaã não foi um Estado, mas uma terra sem fronteiras habitada por diversos povos – os hebreus eram apenas uma entre muitas tribos que andavam por ali. Por isso, sua cultura e seus escritos foram fortemente influenciadas por vizinhos como os cananeus, que viviam ali desde o ano 5000 a.C. E eles não foram os únicos a influenciar as histórias do livro sagrado.

As raízes da árvore bíblica também remontam aos sumérios, antigos habitantes do atual Iraque, que no 3o milênio a.C. escreveram a Epopéia de Gilgamesh. Essa história, protagonizada pelo semideus Gilgamesh, menciona uma enchente que devasta o mundo (e da qual algumas pessoas se salvam construindo um barco). Notou semelhanças com a Bíblia e seus textos sobre o dilúvio, a arca de Noé, o fato de Cristo ser humano e divino ao mesmo tempo? Não é mera coincidência. “A Bíblia era uma obra aberta, com influências de muitas culturas”, afirma o especialista em história antiga Anderson Zalewsky Vargas, da UFRGS.

Foi entre os séculos 10 e 9 a.C. que os escritores hebreus começaram a colocar essa sopa multicultural no papel. Isso aconteceu após o reinado de Davi, que teria unificado as tribos hebraicas num pequeno e frágil reino por volta do ano 1000 a.C. A primeira versão das Escrituras foi redigida nessa época e corresponde à maior parte do que hoje são o Gênesis e o Êxodo. Nesses livros, o tema principal é a relação passional (e às vezes conflituosa) entre Deus e os homens. Só que, logo no começo da Beeblia, já existiu uma divergência sobre o papel do homem e do Senhor na história toda. Isso porque o personagem principal, Deus, é tratado por dois nomes diferentes.

Em alguns trechos ele é chamado pelo nome próprio, Yahweh – traduzido em português como Javé ou Jeová. É um tratamento informal, como se o autor fosse íntimo de Deus. Em outros pontos, o Todo-Poderoso é chamado de Elohim, um título respeitoso e distante (que pode ser traduzido simplesmente como “Deus”). Como se explica isso? Para os fundamentalistas, não tem conversa: Moisés escreveu tudo sozinho e usou os dois nomes simplesmente porque quis. Só que um trecho desse texto narra a morte do próprio Moisés. Isso indica que ele não é o único autor.
Os historiadores e a maioria dos religiosos aceitam outra teoria: esses textos tiveram pelo menos outros dois editores.
Acredita-se que os trechos que falam de Javé sejam os mais antigos, escritos numa época em que a religiosidade era menos formal. Eles contêm uma passagem reveladora: antes da criação do mundo, “Yahweh não derramara chuva sobre a terra, e nem havia homem para lavrar o solo”. Essa frase, “não havia homem para lavrar o solo”, indica que, na primeira versão da Bíblia, o homem não era apenas mais uma criação de Deus – ele desempenha um papel ativo e fundamental na história toda. “Nesse relato, o homem é co-criador do mundo”, diz o teólogo Humberto Gonçalves, do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, no Rio Grande do Sul.

Pelo nome que usa para se referir a Deus (Javé), o autor desses trechos foi apelidado de Javista. Já o outro autor, que teria vivido por volta de 850 a.C., é apelidado de Eloísta. Mais sisudo e religioso, ele compôs uma narrativa bastante diferente. Ao contrário do Deus-Javé, que fez o mundo num único dia, o Deus-Elohim levou 6 (e descansou no 7o). Nessa história, a criação é um ato exclusivo de Deus, e o homem surge apenas no 6o dia, junto aos animais.

Tempos mais tarde, os dois relatos foram misturados por editores anônimos – e a narrativa do Eloísta, mais comportada, foi parar no início das Escrituras. Começando por aquela frase incrivelmente simples e poderosa, notória até entre quem nunca leu a Bíblia: “E, no início, Deus criou o céu e a terra…”

Em 589 a.C., Jerusalém foi arrasada pelos babilônios, e grande parte da população foi aprisionada e levada para o atual Iraque. Décadas depois, os hebreus foram libertados por Ciro, senhor do Império Persa – um conquistador “esclarecido”, que tinha tolerância religiosa. Aos poucos, os hebreus retornaram a Canaã – mas com sua fé transformada. Agora os sacerdotes judaicos rejeitavam o politeísmo e diziam que Javé era o único e absoluto deus do Universo. “O monoteísmo pode ter surgido pelo contato com os persas – a religião deles, o masdeísmo, pregava a existência de um deus bondoso, Ahura Mazda, em constante combate contra um deus maligno, Arimã. Essa noção se reflete até na idéia cristã de um combate entre Deus e o Diabo”, afirma Zalewsky, da UFRGS.

A versão final do Pentateuco surgiu por volta de 389 a.C. Nessa época, um religioso chamado Esdras liderou um grupo de sacerdotes que mudaram radicalmente o judaísmo – a começar por suas escrituras. Eles editaram os livros anteriores e escreveram a maior parte dos livros Deuteronômio, Números, Levítico e também um dos pontos altos da Bíblia: os 10 Mandamentos. Além de afirmar o monoteísmo sem sombra de dúvidas (“amarás a Deus acima de todas as coisas” é o primeiro mandamento), a reforma conduzida por Esdras impunha leis religiosas bem rígidas, como a proibição do casamento entre hebreus e não-hebreus. Algumas das leis encontradas no Levítico se assemelham à ética moderna dos direitos humanos: “Se um estrangeiro vier morar convosco, não o maltrates. Ama-o como se fosse um de vós”.

Outras passagens, no entanto, descrevem um Senhor belicoso, vingativo e sanguinário, que ordena o extermínio de cidades inteiras – mulheres e crianças incluídas. “Se a religião prega a compaixão, por que os textos sagrados têm tanto ódio?”, pergunta a historiadora americana Karen Armstrong, autora de um novo e provocativo estudo sobre a Bíblia. Para os especialistas, a violência do Antigo Testamento é fruto dos séculos de guerras com os assírios e os babilônios. Os autores do livro sagrado foram influenciados por essa atmosfera de ódio, e daí surgiram as histórias em que Deus se mostra bastante violento e até cruel. Os redatores da Bíblia estavam extravasando sua angústia.

Por volta do ano 200 a.C., o cânone (conjunto de livros sagrados) hebraico já estava finalizado e começou a se alastrar pelo Oriente Médio. A primeira tradução completa do Antigo Testamento é dessa época. Ela foi feita a mando do rei Ptolomeu 2o em Alexandria, no Egito, grande centro cultural da época. Segundo uma lenda, essa tradução (de hebraico para grego) foi realizada por 72 sábios judeus. Por isso, o texto é conhecido como Septuaginta. Além da tradução grega, também surgiram versões do Antigo Testamento no idioma aramaico – que era uma espécie de língua franca do Oriente Médio naquela época.

Dois séculos mais tarde, a Bíblia em aramaico estava bombando: ela era a mais lida na Judéia, na Samária e na Galiléia (províncias que formam os atuais territórios de Israel e da Palestina). Foi aí que um jovem judeu, grande personagem desta história, começou a se destacar. Como Sócrates, Buda e outros pensadores que mudaram o mundo, Jesus de Nazaré nada deixou por escrito – os primeiros textos sobre ele foram produzidos décadas após sua morte.

E o cristianismo já nasceu perseguido: por se recusarem a cultuar os deuses oficiais, os cristãos eram considerados subversivos pelo Império Romano, que dominava boa parte do Oriente Médio desde o século 1 a.C. Foi nesse clima de medo que os cristãos passaram a colocar no papel as histórias de Jesus, que circulavam em aramaico e também em coiné – um dialeto grego falado pelos mais pobres. “Os cristãos queriam compreender suas origens e debater seus problemas de identidade”, diz o teólogo Paulo Nogueira, da Universidade Metodista de São Paulo. Para fazer isso, criaram um novo gênero literário: o evangelho. Esse termo, que vem do grego evangélion (“boa-nova”), é um tipo de narrativa religiosa contando os milagres, os ensinamentos e a vida do Messias.

A maioria dos evangelhos escritos nos séculos 1 e 2 desapareceu. Naquela época, um “livro” era um amontoado de papiros avulsos, enrolados em forma de pergaminho, podendo ser facilmente extraviados e perdidos. Mas alguns evangelhos foram copiados e recopiados à mão, por membros da Igreja. Até que, por volta do século 4, tomaram o formato de códice – um conjunto de folhas de couro encadernadas, ancestral do livro moderno. O problema é que, a essa altura do campeonato, gerações e gerações de copiadores já haviam introduzido alterações nos textos originais – seja por descuido, seja de propósito. “Muitos erros foram feitos nas cópias, erros que às vezes mudaram o sentido dos textos. Em certos casos, tais erros foram também propositais, de acordo com a teologia do escrivão”, afirma o padre e teólogo Luigi Schiavo, da Universidade Católica de Goiás. Quer ver um exemplo?

Sabe aquela famosa cena em que Jesus salva uma adúltera prestes a ser apedrejada? De acordo com especialistas, esse trecho foi inserido no Evangelho de João por algum escriba, por volta do século 3. Isso porque, na época, o cristianismo estava cortando seu cordão umbilical com o judaísmo. E apedrejar adúlteras é uma das leis que os sacerdotes-escritores judeus haviam colocado no Pentateuco. A introdução da cena em que Jesus salva a adúltera passa a idéia de que os ensinamentos de Cristo haviam superado a Torá – e, portanto, os cristãos já não precisavam respeitar ao pé da letra todos os ensinamentos judeus.
A julgar pelo último livro da Bíblia cristã, o Apocalipse (que descreve o fim do mundo), o receio de ter suas narrativas “editadas” era comum entre os autores do Novo Testamento. No versículo 18, lê-se uma terrível ameaça: “Se alguém fizer acréscimos às páginas deste livro, Deus o castigará com as pragas descritas aqui”. Essa ameaça reflete bem o clima dos primeiros séculos do cristianismo: uma verdadeira baderna teológica, com montes de seitas defendendo idéias diferentes sobre Deus e o Messias. A seita dos docetas, por exemplo, acreditava que Jesus não teve um corpo físico. Ele seria um espírito, e sua crucificação e morte não passariam – literalmente – de ilusão de ótica. Já os ebionistas acreditavam que Jesus não nascera Filho de Deus, mas fora adotado, já adulto, pelo Senhor. A primeira tentativa de organizar esse caos das Escrituras ocorreu por volta de 142 – e o responsável não foi um clérigo, mas um rico comerciante de navios chamado Marcião.


A Bíblia segundo Marcião

Ele nasceu na atual Turquia, foi para Roma, converteu-se ao cristianismo, virou um teólogo influente e resolveu montar sua própria seleção de textos sagrados. A Bíblia de Marcião era bem diferente da que conhecemos hoje. Isso porque ele simpatizava com uma seita cristã hoje desaparecida, o gnosticismo. Para os gnósticos, o Deus do Velho Testamento não era o mesmo que enviara Jesus – na verdade, as duas divindades seriam inimigas mortais. O Deus hebraico era monstruoso e sanguinário, e controlava apenas o mundo material. Já o universo espiritual seria dominado por um Deus bondoso, o pai de Jesus. A Bíblia editada por Marcião continha apenas o Evangelho de João, 11 cartas de Paulo e nenhuma página do Velho Testamento. Se as idéias de Marcião tivessem triunfado, hoje as histórias de Adão e Eva no paraíso, a arca de Noé e a travessia do mar Vermelho não fariam parte da cultura ocidental. Mas, por volta de 170, o gnosticismo foi declarado proibido pelas autoridades eclesiásticas, e o primeiro editor da Bíblia cristã acabou excomungado.

Roma, até então pior inimiga dos cristãos, ia se rendendo à nova fé. Em 313, o imperador romano Constantino se aliou à Igreja. Ele pretendia usar a força crescente da nova religião para fortalecer seu império. Para isso, no entanto, precisava de uma fé una e sólida. A pressão de Constantino levou os mais influentes bispos cristãos a se reunirem no Concílio de Nicéia, em 325, para colocar ordem na casa de Deus. Ali, surgiu o cânone do cristianismo – a lista oficial de livros que, segundo a Igreja, realmente haviam sido inspirados por Deus.

“A escolha também era política. Um grupo afirmou seu poder e autoridade sobre os outros”, diz o padre Luigi. Esse grupo era o dos cristãos apostólicos, que ganharam poder ao se aliar com o Império Romano. Os apostólicos eram, por assim dizer, o “partido do governo”. E por isso definiram o que iria entrar, ou ser eliminado, das Escrituras.

Eles escolheram os evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João para representar a biografia oficial de Cristo, enquanto as invenções dos docetas, dos ebionistas e de outras seitas foram excluídas, e seus autores declarados hereges. Os textos excluídos do cânone ganharam o nome de “apócrifos” – palavra que vem do grego apocrypha, “o que foi ocultado”. A maioria dos apócrifos se perdeu – afinal de contas, os escribas da Igreja não estavam interessados em recopiá-los para a posteridade. Mas, com o surgimento da arqueologia, no século 19, pedaços desses textos foram encontrados nas areias do Oriente Médio. É o caso de um polêmico texto encontrado em 1886 no Egito. Ele é assinado por uma certa “Maria” que muitos acreditam ser a Madalena, discípula de Jesus, presente em vários trechos do Novo Testamento. O evangelho atribuído a ela é bem feminista: Madalena é descrita como uma figura tão importante quanto Pedro e os outros apóstolos. Nos primórdios do cristianismo, as mulheres eram aceitas no clero – e eram, inclusive, consideradas capazes de fazer profecias. Foi só no século 3 que o sacerdócio virou monopólio masculino, o que explicaria a censura da apóstola e seu testemunho. Aliás, tudo indica que Madalena não foi prostituta – idéia que teria surgido por um erro na interpretação do livro sagrado. No ano 591, o papa Gregório fez um sermão dizendo que Madalena e outra mulher, também citada nas Escrituras e essa sim ex-pecadora, na verdade seriam a mesma pessoa (em 1967, o Vaticano desfez o equívoco, limpando a reputação de Maria).

Na evolução da Bíblia, foram aparecendo vários trechos machistas – e suspeitos. É o caso de uma passagem atribuída ao apóstolo Paulo: “A mulher aprenda (…) com toda a sujeição. Não permito à mulher que ensine, nem que tenha domínio sobre o homem (…) porque Adão foi formado primeiro, e depois Eva”. É provável que Paulo jamais tenha escrito essas palavras – porque, na época em que ele viveu, o cristianismo não pregava a submissão da mulher. Acredita-se que essa parte tenha sido adicionada por algum escriba por volta do século 2.

Após a conversão do imperador Constantino, o eixo do cristianismo se deslocou do Oriente Médio para Roma. Só que, para completar a romanização da fé, faltava um passo: traduzir a palavra de Deus para o latim. A missão coube ao teólogo Eusebius Hyeronimus, que mais tarde viria a ser canonizado com o nome de são Jerônimo. Sob ordens do papa Damaso, ele viajou a Jerusalém em 406 para aprender hebraico e traduzir o Antigo e o Novo Testamento. Não foi nada fácil: o trabalho durou 17 anos.
Daí saiu a Vulgata, a Bíblia latina, que até hoje é o texto oficial da Igreja Católica. Essa é a Bíblia que todo mundo conhece. “A Vulgata foi o alicerce da Igreja no Ocidente”, explica o padre Luigi. Ela é tão influente, mas tão influente, que até seus erros de tradução se tornaram clássicos. Ao traduzir uma passagem do Êxodo que descreve o semblante do profeta Moisés, são Jerônimo escreveu em latim: cornuta esse facies sua, ou seja, “sua face tinha chifres”. Esse detalhe esquisito foi levado a sério por artistas como Michelangelo – sua famosa escultura representando Moisés, hoje exposta no Vaticano, está ornada com dois belos corninhos. Tudo porque Jerônimo tropeçou na palavra hebraica karan, que pode significar tanto “chifre” quanto “raio de luz”. A tradução correta está na Septuaginta: o profeta tinha o rosto iluminado, e não chifrudo. Apesar de erros como esse, a Vulgata reinou absoluta ao longo da Idade Média – durante séculos, não houve outras traduções.

O único jeito de disseminar o livro sagrado era copiá-lo à mão, tarefa realizada pelos monges copistas. Eles raramente saíam dos mosteiros e passavam a vida copiando e catalogando manuscritos antigos. Só que, às vezes, também se metiam a fazer o papel de autores.

Após a queda do Império Romano, grande parte da literatura da Antiguidade grega e romana se perdeu – foi graças ao trabalho dos monges copistas que livros como a Ilíada e a Odisséia chegaram até nós. Mas alguns deles eram meio malandros: costumavam interpolar textos nas Escrituras Sagradas para agradar a reis e imperadores. No século 15, por exemplo, monges espanhóis trocaram o termo “babilônios” por “infiéis” no texto do Antigo Testamento – um truque para atacar os muçulmanos, que disputavam com os espanhóis a posse da península Ibérica.
Escrituras em série
Tudo isso mudou após a invenção da imprensa, em 1455. Agora ninguém mais dependia dos copistas para multiplicar os exemplares da Bíblia. Por isso, o grande foco de mudanças no texto sagrado passou a ser outro: as traduções.Em 1522, o pastor Martinho Lutero usou a imprensa para divulgar em massa sua tradução da Bíblia, que tinha feito direto do hebraico e do grego para o alemão. Era a primeira vez que o texto sagrado era vertido numa língua moderna – e a nova versão trouxe várias mudanças, que provocavam a Igreja (veja quadro na pág. 65). Logo depois um britânico, William Tyndale, ousou traduzir a Bíblia para o inglês. No Novo Testamento, ele traduziu a palavra ecclesia por “congregação”, em vez de “igreja”, o termo preferido pelas traduções católicas. A mudança nessa palavrinha era um desafio ao poder dos papas: como era protestante, Tyndale tinha suas diferenças com a Igreja. Resultado? Ele foi queimado como herege em 1536. Mas até hoje seu trabalho é referência para as versões inglesas do livro sagrado.

A Bíblia chegou ao nosso idioma em 1753 – quando foi publicada sua primeira tradução completa para o português, feita pelo protestante João Ferreira de Almeida. Hoje, a tradução considerada oficial é a feita pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e lançada em 2001. Ela é considerada mais simples e coloquial que as traduções anteriores. De lá para cá, a Bíblia ganhou o mundo e as línguas. Já foi vertida para mais de 300 idiomas e continua um dos livros mais influentes do mundo: todos os anos, são publicadas 11 milhões de cópias do texto integral, e 14 milhões só do Novo Testamento.

Depois de tantos séculos de versões e contra-versões, ainda não há consenso sobre a forma certa de traduzi-la. Alguns buscam traduções mais próximas do sentido e da época original – como as passagens traduzidas do hebraico pelo lingüista David Rosenberg na obra O Livro de J, de 1990. Outros acham que a Bíblia deve ser modernizada para atrair leitores. O lingüista Eugene Nida, que verteu a Bíblia na década de 1960, chegou ao extremo de traduzir a palavra “sestércios”, a antiga moeda romana, por “dólares”. Em 2008, duas versões igualmente ousadas estão agitando as Escrituras: a Green Bible (“Bíblia Verde”, ainda sem versão em português), que destaca 1 000 passagens relacionadas à ecologia – como o momento em que Jó fala sobre os animais –, e a Bible Illuminated (‘Bíblia Iluminada”, em inglês), com design ultramoderno e fotos de celebridades como Nelson Mandela e Angelina Jolie.

A Bíblia se transforma, mas uma coisa não muda: cada pessoa, ou grupo de pessoas, a interpreta de uma maneira diferente – às vezes, com propósitos equivocados. Em pleno século 21, pastores fundamentalistas tentam proibir o ensino da Teoria da Evolução nas escolas dos EUA, sendo que a própria Igreja aceita as teorias de Darwin desde a década de 1950. Líderes como o pastor Jerry Falwell defendem o retorno da escravidão e o apedrejamento de adúlteros, e no Oriente Médio rabinos extremistas usam trechos da Torá para justificar a ocupação de terras árabes. Por quê? Porque está na Bíblia, dizem os radicais. Não é nada disso. Hoje, os principais estudiosos afirmam que a Bíblia não deve ser lida como um manual de regras literais – e sim como o relato da jornada, tortuosa e cheia de percalços, do ser humano em busca de Deus. Porque esse é, afinal, o verdadeiro sentido dessa árvore de histórias regada há 3 mil anos por centenas de mãos, cabeças e corações humanos: a crença num sentido transcendente da existência.

Postado por Gilberto e Adriana às 16:13 Nenhum comentário:  
Enviar por e-mail
BlogThis!
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no Facebook
Compartilhar com o Pinterest

Conhecendo a Bíblia
"Conhecendo a Bíblia Sagrada.
 Origem e Formação da Bíblia 1. Indícios e evidências históricas O período histórico da formação da Bíblia situa-se entre 1100 a. C. ou 1200 a. C. a 100 d. C. Provavelmente, a mais antiga parte escrita da Bíblia é o Cântico de Débora, que se encontra no livro dos Juízes (Jz, 5). Quando os hebreus chegaram a Canaã, já havia na terra um certo desenvolvimento literário, como por exemplo, o alfabeto fenício (do qual se derivou o hebraico), que já existia no século XIV a. C. Os judeus chegaram lá por volta do século XIII a.C. Outro documento desta época é o calendário de Gezér, que data mais ou menos do ano 1000 a.C.

 É uma indicação de datas para uso dos agricultores. É o documento mais antigo encontrado na Palestina. Outro documento também muito antigo é o sarcófago do Rei Airam, que contém uma inscrição e foi encontrado nos séculos XIV ou XV a. C., em Biblos. Há ainda umas tabuletas encontradas em Ugarit (em 1929), onde estão escritos uns poemas semelhantes aos salmos, datando dos séculos XIV ou XV a. C. Além destes, há outros documentos provando que já havia uma escrita na Palestina, antes dos hebreus chegarem lá. A inscrição do túmulo de Siloé (700 a. C.), explicando como foi feito; os "óstracon", de Samaria, onde há uma espécie de carta diplomática, são documentos que provam a continuidade de uma atividade literária.

Em Juizes 8,14, o autor descreve um acontecimento ocorrido mais ou menos em 1100 a.C. E em que língua foi escrito este fato pela primeira vez, na época em que aconteceu? Provavelmente no alfabeto fenício (pré-hebraico). 2. A tradição oral e a tradição escrita A parte mais antiga da Bíblia remonta justamente deste tempo (1100 a.C.), quando a escrita ainda não estava bem definida, e é oral. Desde este tempo já se fora criando uma tradição, que existia oralmente e era transmitida aos novos pelos mais velhos nas reuniões que havia nos santuários. Por este tempo, só eram relatados os acontecimentos do deserto, do Sinai, da aliança de Deus com o povo. Mas os jovens queriam saber o que havia acontecido antes disto. Então foram sendo compostas as histórias dos Patriarcas. Mas, e antes deles, antes de Abraão? Passaram à história da criação do mundo.

Por isso, se afirma que a parte mais antiga da Bíblia é o Cântico de Débora, no livro dos Juizes. A partir daí, fez-se um retrospecto didático-histórico. Como dissemos, estas histórias iam sendo passadas oralmente de pai a filho, nos santuários. Acontece que nem todos iam para os mesmos santuários, o que motivou a existência de pequenas diferenças na catequese do norte e na do sul. A tradição do sul foi chamada de JAVISTA (J), pois Deus era tratado sempre por Javé; a do norte se chamou ELOISTA (E), porque Deus era tratado como Eloi. A tradição oral existiu até os tempos de Daví, quando foi escrita a tradição javista; meio século depois, foi escrita também a eloista. Por volta de 721 a.C., na época, da divisão dos reinos, quando Samaria foi destruída pelos assírios, muitos sacerdotes do norte fugiram para o sul e levaram consigo a sua tradição. A partir de então, as duas foram compiladas num só escrito. Falamos das duas tradições: uma do norte e outra do sul. Mas não existiam apenas estas duas, que são as principais. Há ainda a DEUTERONOMICA (D), encontrada casualmente em 622 a. C. por pedreiros, que trabalhavam num templo. Corresponde ao livro Deuteronômio da Bíblia atual. Após esta, surgiu a SACERDOTAL (P), nova compilação das catequeses antigas de Israel, datada do século VI a.C. Ao fim, estas quatro tradições foram combinadas entre si e compiladas em 5 volumes, dando origem ao Pentateuco da Bíblia atual.


Na tradição Javista, Deus é antropomórfico. Na Sacerdotal, Deus é poderoso, está acima do tempo, o que significa um progresso no conceito de Deus que o povo tinha. A redação do Pentateuco se deu pelo ano 398 a.C. e compreendia a primeira parte da Bíblia judaica. A partir de Josué, a tradição continuou oral, para ser escrita somente por volta de 550 a.C. E foram escritas do modo como o povo contava. Por isso não se pode dar a mesma importância histórica aos fatos descritos nestes livros em relação a outros posteriores, pois alguns fatos narrados foram baseados na tradição popular, enquanto que outros foram baseados em documentos de arquivos (anais do Reino). Este é um grande desafio para os estudiosos e também uma fonte de divergências.
3. Os Intérpretes - Profetas e Sábios Durante muito tempo, os profetas foram os orientadores do povo de Deus. Os livros proféticos resumem os seus ensinamentos, e na sua maioria foram escritos só mais tarde, por seus seguidores. Somente por volta do ano 200 a.C. é que foram redigidos os livros proféticos. Os livros Sapienciais foram o resultado de um estilo literário que esteve em moda durante muito tempo, na época posterior ao exílio. São umas reflexões humanistico-religiosas. Passados os profetas, surgiram os sábios que raciocinavam sobre as coisas da natureza, tirando delas ensinamentos para a vida. Foram acrescentados aos livros sagrados nos últimos séculos a.C., sendo os mais recentes livros do AT.


4. A nova tradição da era cristã O NT não foi escrito com a finalidade de ser acrescentado à Bíblia. No tempo de Cristo e dos Apóstolos, o livro sagrado era apenas o AT. O próprio Jesus Cristo se baseava nele em suas pregações. E Ele mandou apenas pregar, e não escrever. Foi quando uma nova tradição oral foi se formando. E após a morte de Cristo, os apóstolos saíram pregando. Mas veio a necessidade de congregar outras pessoas para o anúncio, em vista do grande número de comunidades existentes. Então, começaram a escrever. Mais tarde, com a aceitação também de cidadãos estrangeiros nas comunidades, a mensagem precisou ser traduzida e adaptada. Além disso, o próprio povo necessitava de uma escrita (doutrina escrita) para se conservar una, após a morte dos Apóstolos. Esta redação, no início, era apenas de alguns escritos esparsos, que só depois de algum tempo foram juntos em livros. Exemplo disso está em Mc 2, uma série de disputas de JC com os Judeus, onde se vê claramente que foi recolhida de escritos separados. Também em João se lê: "Muitas outras coisas Jesus fez que não foram escritas..." (Jo 21,24) Isto significa que só foram escritas aquelas mensagens que teriam utilidade, conforme as necessidades momentâneas. 

O evangelho de Marcos, o primeiro a ser escrito, data dos anos 60 ou 70 d.C.; os de Lucas e Mateus, são de 70 ou 80, o que significa que somente após uns 40 anos da morte de JC sua palavra começou a ser escrita. 0 Evangelho de João só foi escrito em torno do ano 100 d.C. Antigamente, se acreditava ser Mateus o autor do primeiro Evangelho. Mas a critica histórica mostra que o de Marcos foi anterior. Aliás, a respeito deste evangelho de Mateus, não se sabe ao certo quem é o seu autor. Foi atribuído a Mateus, apenas por uma tradição e também por uma praxe da época de se atribuir um escrito a alguém mais conhecido e famoso, para que a obra tivesse mais autoridade.
5. Entendendo algumas dificuldades concretas Durante o tempo anterior á escrita dos Evangelhos, havia apenas a pregação dos Apóstolos, recordando os fatos da vida de Cristo, todavia eram fatos esparsos, sem nenhuma preocupação com seqüência ou unidade. Por isso os Evangelhos, que foram esta pregação escrita, se contradizem em algumas datas, o que mostra a pouca importância dada à cronologia. Os fatos eram recordados e aplicados, conforme as necessidades. Assim, até entre os Evangelhos sinóticos, que seguiram a mesma fonte, há diversificações. Por exemplo, no Sermão da Montanha, em Lucas fala "bem aventurados os pobres"; e em Mateus, "bem aventurados os pobres de espírito". A diferença consiste no seguinte: Lucas deu um sentido social, mais importante para as comunidades gregas, para as quais escrevia. Mas o de Mateus destinava-se às comunidades judias e queria combater uma doutrina dos judeus que tinham uma idéia falsa de pobreza. Para eles, o próprio fato de a pessoa ser pobre, já lhe garantia a salvação, enquanto outra pessoa, pelo simples fato de ser rica, já estava condenada. Por causa disso ele escreveu "pobres de espírito". Outro ponto de discordância é o caso da cura de um cego. Mateus diz "um cego, na saída de Jericó"; e Lucas "dois cegos, na entrada de Jericó". 0 fato da 'entrada' e 'saída' pode ser explicado pela existência de duas cidades chamadas Jericó. 0 fato de serem um ou mais cegos explica-se pelo seguinte: era comum naquele tempo os cegos formarem grupos em torno de um cego-lider; e o nome deste geralmente era o do grupo. No entanto, estes detalhes pouco importam ao evangelho. 0 seu interesse é a apresentação da mensagem (evangélion = boa nova).


6. A fonte comum Os Evangelistas sinóticos se basearam no Evangelho de Marcos e noutra fonte, convencionada por fonte "Q", simbolizando os inúmeros escritos esparsos de que já tratamos. Espalharam cópias destes por outras partes do mundo. Lucas, Mateus, cada um em lugares diferentes, se inspiraram nos escritos disponíveis e inclusive no evangelho de Marcos, que na época já havia sido escrito. O fato do primeiro Evangelho ser atribuído anteriormente a Mateus se deve a uma afirmação de Eusébio de que Mateus escrevera a "logia" do Senhor em aramaico. Mas a crítica histórica provou que o Evangelho que conhecemos não traz apenas a "logia" do Senhor e não foi escrito em aramaico, e sim em grego. Portanto a noticia de Eusébio se refere a outro escrito, e não a este evangelho. Nada impede, porém, que tenha sido escrito por discípulos de Mateus e atribuído ao Mestre. Aliás, a respeito de "Evangelho", o primeiro a usar esta palavra para indicar as memórias dos Apóstolos foi S. Justino, em 130 d.C.


7. As Cartas As cartas de Paulo foram enviadas para serem lidas em público. Em I Tes 5, 27 há uma alusão a isto. Havia também o intercâmbio das cartas, como se lê em Col 4,16: "mostrem esta carta para Laodicéia e tragam a de lá para vocês". Aos poucos as cartas foram colecionadas, e no fim do I século já se tem notícia delas, quando em II Ped 3,15 se lê: "...nosso irmão Paulo vos escreveu conforme o dom que lhe foi dado... " As cartas de Paulo foram os primeiros escritos do NT. Não se sabe quando os Evangelhos e elas foram acoplados, mas já no fim do I século estavam reunidos num só livro. As Epistolas Católicas (universais) são chamadas assim por se destinarem à Igreja em geral, e não a tal ou qual comunidade, como fizera Paulo. Elas também se originaram da necessidade pastoral, e já no começo do II século estavam incorporadas aos outros escritos do NT. Os Atos dos Apóstolos podem ser considerados a continuação do terceiro Evangelho, pois também foi escrito por Lucas. E o Apocalipse de S.João, livro profético, foi acrescentado por último. Nos escritos do NT, freqüentemente se encontram citações do AT. É que muitas vezes os Apóstolos queriam tirar dúvidas sobre certas passagens, que tinham falsa interpretação. Nas assembléias, eram lidos escritos do AT e do NT, para explicá-los. Exemplo disto temos em I Tes 4,15; I Cor 7,10.25.40; At 15, 28; I Tim 5,18; Lc 10,7.


8. O Cânon Sagrado No século IV, a Igreja se reuniu em Concilio em Nicéia, e uma das tarefas era organizar o "cânon", ou a lista de livros sagrados considerados autênticos. Neste Concilio, os livros foram estudados e se investigou quais os que sempre foram lidos nos cultos e sempre foram considerados legítimos. E se estabeleceu a ordem ainda hoje conservada. O motivo pelo qual alguns livros foram postos em dúvida era a grande quantidade de livros apócrifos, que fazia com que se duvidasse dos verdadeiros. Havia muitos livros que os judeus não aceitavam. Então os Ss. Padres ponderaram os prós e contras e definiram a lista que foi aprovada."
 - Bíblia Católica Online

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem